domingo, novembro 27, 2005

JANELAS ALTAS (X)

Dez razões para uma revisão estatutária.

Ao longo das últimas semanas, com o beneplácito do Diário Insular, tenho vindo a maçar-vos com o que penso serem as prioridades para a revisão estatutária que se anuncia. Devo aqui confessar que vejo o nosso futuro Estatuto, tecnicamente diminuído, uma vez que após a revisão de 2004, deixou de ser qualificado na maioria das suas matérias. Foi um passo atrás. De qualquer forma, não entendo que tudo se resolve com e na Constituição. Pelo contrário, sendo a nossa Autonomia política, essa política também se faz de práticas. Daí entender que ao Estatuto cabe um papel de orientação, de clarificação, mas sobretudo, de potenciação da praxis autonómica. Guardei este artigo para alguns sublinhados e outras questões, que, parecendo menores, não deixam de merecer tratamento relevante. Peço-vos, pois, um último esforço para as seguintes dez prioridades:

1- As novas competências legislativas
A remissão expressa para o Estatuto de quais serão as matérias sobre as quais a Região terá competências legislativas e executivas impõe um redobrado cuidado e esforço no sentido da sua o mais completa discriminação. Ainda que sempre tenhamos defendido que melhor teria sido optar-se por uma listagem de competências e não de matérias, agora que o interesse específico e as leis gerais da República estão afastadas do horizonte interpretativo constitucional, vamos fazer fé que as competências reservadas aos órgãos de soberania sejam o único limite material ao pleno exercício autonómico e que o Estado Unitário não nos continue a ser lembrado e reforçado pelos senhores juízes conselheiros do palácio Ratton. Como as nossas reservas não nos tolhem a vontade, outros dois pontos devem ser acautelados no Estatuto. A necessidade dessa listagem ser, obrigatoriamente, revista de 5 em 5 anos, a exemplo de Espanha, evitando que a Região se veja condicionada pela sua taxatividade; a necessidade de, quanto a algumas matérias, se estabelecerem votações qualificadas na Assembleia Legislativa (v.g. a própria proposta de Estatuto, a lei eleitoral, a criação de autarquias, o regimento, etc.).

2- A iniciativa legislativa popular
A previsão estatutária da iniciativa legislativa popular, necessidade emergente dos tempos hodiernos terá a vantagem de trazer para a cena parlamentar a voz, a posição, a intenção directa do cidadão, fazendo-o olhar as instituições como um reflexo da sua vontade.

3- Os órgãos de governo próprio
Marcados na sua génese por planos muito restritos ao nível das suas competências ou ao nível da sua representatividade territorial, os órgãos de governo próprio vêem-se pressionados por novos desenvolvimentos das concepções políticas na modernidade. Na verdade, continua a não ser possível a criação de departamentos do Governo noutra ilha fora da tradicional tri-polaridade ou a realização de sessões plenárias da Assembleia fora da cidade da Horta. Por outro lado, a realidade tem mostrado que quer junto do Governo quer junto do Parlamento devem ser instituídos um conjunto de outros instrumentos de concertação, regulação e análise de cariz independente que forneçam elementos relevantes para a condução das políticas públicas. Falamos de provedores, observatórios para questões sociais, entidades independentes para questões financeiras ou entidades reguladoras para questões ambientais e do ordenamento. Também, não será demais lembrar à Assembleia que tem responsabilidades acrescidas no âmbito da pedagogia, doutrina e investigação dos princípios autonómicos, seja através do patrocínio e incentivo a actividades meritórias, seja pela constituição de observatórios ou fundações com esse propósito.

4- O estatuto dos cargos políticos
Menos políticos, melhores políticos e mais bem remunerados, é um desafio a cumprir. Urge estabelecer um número máximo de deputados na Assembleia; melhorar o regime das incompatibilidades, de modo a diminuir as fraudes políticas que são as candidaturas dos autarcas ou dos deputados regionais a nacionais e vice-versa; acabar com as zonas cinzentas dos conflitos de interesses; clarificar as suspensões dos mandatos para desempenho de cargos de nomeação política; profissionalizar o cargo de Deputado no pressuposto de que só assim os melhores estarão disponíveis para aceder às funções públicas; clarificar o estatuto dos cargos de nomeação política e dos cargos dirigentes da administração regional autónoma, reduzindo o seu número e aumentando as respectivas remunerações

5- As relações com a administração central
A decidida aposta na construção de relações de cooperação mais fluidas e estáveis é o caminho escolhido pelos sistemas políticos descentralizados mais avançados. A criação de estruturas formais de cooperação, seja com a Madeira seja com a administração central, através de Comissões Bilaterais e/ou Comissões Mistas Sectoriais, contribuirá para a necessária melhoria da nossa capacidade de auto-governo.

6- A projecção externa da Região
Nos termos das normas europeias e no respeito pela Constituição, a Região pode dispor de representação directa nos órgãos da União Europeia em todos aqueles assuntos que afectem o conteúdo das suas competências, por isso as administrações, central e regional autónoma, devem regular os sistemas de coordenação necessários que garantam a participação efectiva na elaboração, programação, distribuição e execução dos diferentes assuntos comunitários. Do mesmo modo, a Região deve poder passar a ter presença directa nos organismos internacionais cuja própria regulação de acesso e participação assim o permita, bem como solicitar ao Governo da República a celebração de tratados ou acordos internacionais em matérias do seu directo interesse, em especial, as derivadas da sua situação geoestratégica ou da sua condição de região insular europeia ultraperiférica. Por outro lado, o acesso aos benefícios decorrentes de tratados e acordos internacionais directamente respeitantes à Região ou que nela tenham reflexo só será pleno se a administração central delegar nos órgãos de governo próprio da Região as competências necessárias à boa execução desses acordos.
Finalmente, a Região deve promover a cooperação inter-regional no âmbito da União Europeia, mas, também, privilegiar relações com outras realidades regionais insulares e atlânticas, bem como desenvolver, com estas, uma política própria de solidariedade e de cooperação, consagrando a possibilidade de instalação de infra-estruturas no exterior, como uma estratégia que pode aliar-se à necessidade premente de promoção dos Açores e dos seus produtos.

7- A nova filosofia financeira
Ao Estatuto cabe uma função mais destacada na determinação do âmbito da autonomia financeira da Região. A reserva da Lei de Finanças Regionais em matéria financeira apenas recai sobre as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas cabendo o possível alcance do regime financeiro da Região, pelo menos no que cabe ao regular exercício das suas competências e de gestão dos seus recursos, ao Estatuto.
Além disso, poder-se-ão prever fórmulas, posteriormente quantificáveis em sede de Lei de Finanças Regionais que combinem um modelo baseado numa nova filosofia de gestão tributária por parte da Região conjugado com um novo conceito de solidariedade inter-regional.
Conceber a autonomia financeira tendo como ponto de partida o montante global da despesa regional, e não das receitas próprias, não significa abdicar das ideias ou valores autonomistas, mas a clarificação de que as condições para nosso desenvolvimento são, hoje, diversas.

8- A reforma da administração
A adequação, legal e regulamentarmente, dos modelos organizativos da administração territorial regional à realidade arquipelágica e aos novos desígnios da modernidade político-administrativa é tão indispensável para uma maior racionalidade na utilização dos recursos públicos quanto para aumentar a eficiência do conjunto do desenho autonómico. Na perspectiva de criar melhores condições institucionais para a articulação de políticas de base territorial mas, também, para evitar que o próprio processo de desconcentração imposto pela administração central nos continue a provocar efeitos perversos, sugerem-se novos horizontes administrativos ligados às realidades de ilha e/ou inter-ilhas, acompanhados de novos modelos para a administração regional autónoma e para o seu funcionalismo público.

9- A transferência de competências
Não tem sido uso aproveitar as revisões estatutárias para estabelecer metodologias no plano das transferências de competências, e respectivos serviços, entre administração central e regional autónoma. Discordamos que assim continue a ser. A sua previsão estatutária permite uma estratégia na efectivação dessas transferências; elimina a discricionariedade da administração central, volúvel, consoante outros interesses; permite que a Região garanta a transferência, para a sua dimensão, das competências que sempre quis e deve assegurar.
No plano formal será exemplar a constituição de estruturas bipartidas que estabeleçam uma calendarização e a quantificação dos meios humanos, técnicos e financeiros que devam acompanhar essas transferências. Como exemplo lembramos competências e serviços como o instituto geográfico, meteorológico, as administrações financeiras, os serviços ligados à garantia e fomento agrícola, etc.

10- O domínio público e privado da Região
O problema da dominialidade é tão velho quanto a autonomia. Na verdade, questões que deveriam ter ficado resolvidos no primeiro Estatuto, ainda perduram e são elemento de embaraço e contradição entre a administração central e regional. Podemos referir a gestão do domínio público marítimo, inconcebivelmente afastada das competências regionais; o património construído que permanece no acervo estadual sem que se transfira a sua propriedade para a Região, conforme contínuos apelos. Surge esta oportunidade de clarificação. Uma fórmula que assegure que todo o património público e privado é da Região, podendo ser afecto, apenas, a competências de âmbito nacional, é uma revolução coperniciana. Do mesmo modo urge assegurar à Região a gestão e exploração de todo o seu território, incluindo domínio público marítimo, seja a orla costeira, sejam os fundos marinhos da sua área económica exclusiva. Acompanhando esse impulso deve promover-se a formalização de uma comissão bilateral que num prazo determinado proceda ao levantamento da totalidade do património móvel e imóvel a transferir.

Termino. Penso ter provado à saciedade que é desejável mudar algo. Ao longo destes dez artigos disponibilizei um acervo de diagnósticos que outros, igualmente, já haviam tornado públicos. Sem qualquer pretensão penso que ficaram algumas pistas para possíveis soluções. Resta-me esperar que quem integra os trabalhos de revisão também partilhe algumas destas preocupações. Votos de bom trabalho…para bem de todos nós!

Sé, 18 de Novembro de 2005

domingo, novembro 20, 2005

JANELAS ALTAS (VIII)

Para uma revisão Estatutária

Um ponto central das reivindicações autonomistas, e que não se pode deixar de ter presente, foi de que as receitas geradas na Região deveriam pertencer à própria. Se em 1895 era compreensível que as receitas que o Estado de cá levava eram em muito superiores às necessidades de despesa das mesmas, tal ideia é hoje descabida, pois que as novas ambições autonomistas exigem um nível de financiamento muito superior. Deixar uma Região atrasada entregue às suas próprias receitas é a melhor forma de perpetuar esse atraso. Foi, portanto, nesta lógica que em 1976 se acolheu na Constituição e no Estatuto um auxílio financeiro do Estado como forma de expressão da solidariedade nacional. Contudo, mais uma vez, o que nasceu na melhor das intenções (presume-se) trouxe no seu âmago «o ovo da serpente» que se tem feito revelar em decisões unilaterais ao longo dos últimos 30 anos.

Que autonomia financeira?
Em relação a princípios a ter em conta como referenciais no momento de determinar a amplitude da nossa autonomia, surgem o da autonomia financeira (na receita e na despesa) e o da solidariedade. Contudo, não há uma precisão institucional de como articular estes dois princípios. Pelo contrário, só no caso do princípio da solidariedade a Constituição, sem predeterminar qualquer critério de configuração, prevê a alínea g) do n.º 1 do artigo 227.º que as regiões autónomas sendo pessoas colectivas territoriais e têm o poder, a definir nos respectivos estatutos, de «dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas» o que deve ser integrado com o n.º 3 do artigo 229.º que dispõe que «as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas são reguladas através da lei prevista na alínea t) do artigo 164.º» e com a alínea g) do artigo 9.º que dispõe ser tarefa fundamental do Estado «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira». Esclarecidos? Pois, eu também não!
No mesmo sentido, não se pode descurar a vertente garantística inerente à consagração do princípio da autonomia financeira. Merecem aqui especial atenção os recursos financeiros que integram a «fazenda» da Região e o seu regime de gestão. A um enunciado amplo dos diferentes recursos entre os quais cabe destacar os impostos próprios e a participação nos recursos do Estado, não segue, contudo, uma indicação preferencial de como se devem articular estes recursos nem a sua proporção no sistema global do financiamento.
É nestes termos que aqui se vem defender que ao Estatuto cabe uma função mais destacada na determinação do âmbito da autonomia financeira da Região. O obstáculo mais importante que se pode interpor entre este esforço e o espaço de acção é o papel constitucionalmente atribuído à Lei de Finanças Regionais. Sobre ela não se esconde a importância que tem tido na definição do nosso regime financeiro. Conquista incontornável dos últimos anos de governação, esta lei tem tido, no entanto, um protagonismo maior do que lhe permite retirar a Constituição, com uma expansão de conteúdos que vai muito além do previsto, o que também só foi possível devido às próprias normas estatutárias não se terem perfilado convenientemente em matéria financeira.
É que, em bom rigor, a reserva da Lei de Finanças Regionais em matéria financeira apenas recai sobre as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas, o que já não é pouco seja lá o que isso queira em verdade compreender, cabendo o possível alcance para definir o regime financeiro da Região, pelo menos no que cabe ao regular exercício das suas competências e de gestão dos seus recursos, ao Estatuto.

O Estatuto e a solidariedade inter-territorial.
As opções a considerar são diversas e de alcance múltiplo. No Estatuto poderão prever-se fórmulas que combinem em maior ou menor grau de intensidade um modelo baseado numa nova filosofia de gestão tributária por parte da Região conjugada com um novo conceito de solidariedade inter-regional (com/sem um contributo regional para o Orçamento do Estado; com/sem uma compensação pelos serviços fundamentais do Estado que esta Região presta no seu território), e, posteriormente, quantificáveis em sede de Lei de Finanças Regionais. Um modelo como este, em resultado do qual se deverá garantir a suficiência financeira para o pleno auto-governo só pode servir para orientar, do ponto de vista estatutário, uma especial e transparente implementação do que é o princípio da solidariedade.
Fundamentalmente, o que cabe destacar, agora, é que no movimento de reforma do Estatuto há um espaço suficientemente amplo para caracterizar e definir o nosso regime financeiro, sem que se esqueçam, pois o Estatuto também não deixa de ser uma lei nacional, as tarefas fundamentais do Estado que desde 76 foram, em pleno, assumidas pela Região, tais sejam as da educação e saúde, de cujos respectivos meios financeiros nunca vieram acompanhadas (por exemplo, recentemente, as comunidades autónomas espanholas conseguiram um acordo histórico com a criação de um fundo de solidariedade nacional para o financiamento específico da saúde).
A tudo isto acresce que o actual Estatuto não prevê os instrumentos suficientes para garantir um espaço substancial da autonomia financeira na sua dupla vertente de garantia de receitas e liberdade de despesas. Sempre se deve ter presente que a via dos impostos próprios pode estar enquadrada num contexto bem mais preciso se o modelo de financiamento se basear numa ampla adaptação dos impostos estatais, com faculdades normativas e de gestão tributária própria, sempre se podendo incluir algumas regras que permitam definir a margem de actuação da Região em questões fiscais candentes como as da dupla insularidade ou as do mecenato cultural, tecnológico ou de investigação, social e ambiental.
A vertente da autonomia das despesas é uma vertente especialmente importante garantir e um elemento chave para o exercício das competências substantivas de que dispõem as Regiões Autónomas, uma vez que supõe o reconhecimento de uma margem de liberdade para determinar o destino e a orientação do gasto público de acordo com os objectivos da política social que exprimem as instituições regionais.
Estas margens de autonomia financeira foram, especialmente, condicionadas como o regime da função pública em 1989 ou mais recentemente através da Lei de Estabilidade Orçamental com a limitação de limites directos à competência de endividamento regional. É assim que se defende que o Estatuto pode, e deve, conter algumas determinações claras no sentido de evitar, ao menos, uma imposição unilateral de limites derivados de políticas económico-financeiras nacionais. A previsão no Estatuto de um princípio de negociação prévia ou, de participação, antes da adopção destas medidas de estabilidade é uma fórmula possível tal como o será deduzir do princípio da autonomia financeira a impossibilidade de se estabelecerem mecanismos procedimentais de tutela e controlo estatal (v.g. a criação de uma entidade independente que tutele e fiscalize as contas da Região junto da Assembleia Legislativa, enquanto órgão de governo próprio com legitimidade directa).

O Estatuto e o fomento regional.
No terreno económico-financeiro, consolidaram-se nos últimos anos poderes de despesa ao nível do Estado que permitem realizar políticas de fomento inerentes às suas competências sobre planificação, o que permitiu ao Estado consignar algumas despesas em sede de orçamento de Estado (v.g. subsídios e subvenções a particulares e empresas). Ora, este reconhecimento tem repercussão directa nas competências sectoriais, que incluem poderes de regulação e/ou execução, atribuídas à Região. Se, por um lado, se admite o princípio da intervenção estatal mediante o reconhecimento de um poder de despesa, por outro, deve conciliar-se este poder com as regras de distribuição de competências aplicáveis aos sectores das medidas de fomento. Isto obriga a uma integral territorialização dos fundos estatais para permitir a sua eficaz gestão por parte das Regiões, sendo solução necessária condicionar por via estatutária, e não pela Lei de Finanças Regionais, este poder de despesa, com base nas competências assumidas pela Região sobre sectores que são objecto das suas medidas de fomento.

Uma nova filosofia financeira.
As reflexões que acabamos de fazer permitem uma alteração do tratamento estatutário da «fazenda» da Região que vai muito além do simples enunciado de receitas. Bem sabemos que «a região moderna terá de ser uma região modesta» e que não se pode deixar de tentar prosseguir o caminho de substituição do público pelo privado. Mas, neste século XXI, é impensável ignorar as características próprias do arquipélago e o esforço em infra-estruturas que temos de continuar a fazer. Muito provavelmente a autonomia financeira, nas palavras de Paz Ferreira, “terá que ser repensada, terá que passar a ter como ponto de partida, o montante global da despesa regional e não das receitas próprias da Região” sob pena de apenas dispormos «de receitas de vida e despesas de morta», repetindo-se tempos em que os órgãos de governo próprio funcionavam como simples «pagadorias».
Optar por uma solução deste tipo não significa abdicar das ideias ou valores autonomistas, mas a clarificação de que as condições para o desenvolvimento da autonomia são, hoje, diversas. É nestes termos que defendo que a autonomia deve encontrar o seu quadro de desenvolvimento numa nova filosofia de solidariedade inter-regional, com uma vertente nacional clarificada, mas, sobretudo, com uma dimensão europeia e internacional que lhe assegure os meios necessários à sua estabilidade e evolução. Sobre esta imprescindível vertente externa, para o novo rumo autonómico, falaremos em próxima oportunidade.

Sé, 28 de Outubro de 2005

domingo, novembro 13, 2005

JANELAS ALTAS (IX)

Para uma revisão estatutária.

Há um ano atrás, na edição de 5 de Setembro, escrevi que uma estratégia dirigida à valorização exterior da Região, correspondente à sua realidade político-constitucional e à sua posição estratégica entre os continentes Europeu e Americano, não pode interpretar-se como rival da política exterior do Estado, devendo, antes, ser concebida como uma dimensão inevitável do exercício da autonomia numa sociedade internacional cada vez mais inter conectada e aberta, onde as competências regionais adquirem uma crescente relevância além das fronteiras do Estado. A acção exterior regional, em geral, e a participação na política comunitária, em particular, devem ser, pois, interpretadas, fundamentalmente, como uma melhoria no exercício da gestão pública. Essas palavras não perderam actualidade e, vendo reforçada a sua acuidade, tornam a sua previsão em sede de Estatuto Político-Administrativo incontornável.

As relações com a Europa.
Não obstante as frustrações e os desencantos relativos à falta de correspondência entre o limitado alcance do fenómeno regional na Europa institucional e a dimensão política que alguns lhe querem atribuir, verifica-se a permanência de uma forte convicção sobre o papel das Regiões na construção da nova arquitectura europeia. Partilham dessa convicção naturalmente as forças políticas nacionalistas, regionalistas e autonómicas que consideram dever do Estado aceitar e potenciar o peso das políticas regionais e bem assim providenciar o reconhecimento institucional das regiões no quadro da União Europeia por forma a garantir não só a participação nas fases ascendente e descendente das políticas europeias como, ainda, a sua presença oficial em Bruxelas.
Neste enquadramento reforçamos a defesa da tese de que o Estado português deve possibilitar a participação activa do Governo Regional nos diferentes procedimentos de tomada de decisão das instituições comunitárias nas matérias que afectem a suas competências. Nos termos das normas europeias e no respeito pela Constituição, a Região pode dispor de representação directa nos órgãos da União Europeia e os seus representantes podem tomar parte nas delegações do Estado Português no Conselho de Ministros da União Europeia em todos aqueles assuntos que afectem o conteúdo das suas competências. Para esse efeito a administração central e a regional autónoma devem regular os sistemas de coordenação necessários que garantam a participação efectiva da Região na elaboração, programação, distribuição e execução dos diferentes fundos comunitários.
No seguimento desta filosofia a Região não pode deixar de prever no seu Estatuto a constituição de um círculo eleitoral próprio, que eleja dois deputados para o Parlamento Europeu.

Negociações internacionais.
O exercício das competências autonómicas permite realizar actuações de relevância exterior é certo, mas daqui não se pode depreender que a Região seja plenamente livre no sentido de poder levar a cabo qualquer actividade externa, antes que deve respeitar as matérias base das relações internacionais, como o ius contrahendi ou a criação de obrigações e responsabilidades internacionais, inerentes à política externa de um Estado. O problema radica, mais uma vez, em torno dos contornos pouco precisos de muitos dos preceitos constitucionais e doutrinários. É aí que o novo Estatuto deve mover-se, recolhendo algumas precisões relativas à actividade exterior da Região.
Nesse sentido, normal será o reconhecimento à Região do poder de levar a cabo acções de relevância externa no exercício das suas competências, submetidas, se a tal houver necessidade, ao parecer de uma comissão bilateral paritária. Do mesmo modo a Região deve poder passar a ter presença directa nos organismos internacionais cuja própria regulação de acesso e participação assim o permita, e em especial nos relacionados com a língua, a cultura, com a cooperação inter-regional, o desenvolvimento sustentável e o ambiente.
Além disso, a formalização por parte do Estado Português de tratados ou acordos internacionais que acarretem uma alteração ou restrição das competências previstas no Estatuto exige uma consulta prévia consequente aos órgãos de governo próprio da Região. O Estado deve, ainda, garantir a efectiva participação do Governo Regional nas negociações de tratados e acordos que acarretem uma alteração ou restrição das competências previstas no Estatuto através de representação na delegação nacional que negociar o tratado ou o acordo, bem como nas respectivas comissões de execução ou fiscalização. Aliás, estes direitos já estão, constitucional e estatutariamente, consagrados o que lhes tem faltado é a dimensão prática que, a nosso ver, só pode ser garantida por acordos entre a administração central e a regional autónoma que regulem sistemas de coordenação necessários à participação efectiva da Região nesses processos.
Por outro lado, também já está previsto que os benefícios decorrentes de tratados e acordos internacionais directamente respeitantes à Região ou que nela tenham reflexo serão afectados a projectos de desenvolvimento desta, contudo, mais uma vez, esta disposição só será plena se a administração central delegar nos órgãos de governo próprio da Região as competências necessárias à boa execução desses tratados e acordos internacionais.
Finalmente, a Região deve, também, poder solicitar ao Governo da República a celebração de tratados ou acordos internacionais em matérias do seu directo interesse, em especial, as derivadas da sua situação geoestratégica ou da sua condição de região insular europeia ultraperiférica, assim como os que permitam estreitar laços sócio-económicos e culturais com aqueles países ou regiões onde se encontrem comunidades açorianas.

Cooperação inter-regional.
Apesar das limitações formais impostas por muitas constituições e das reservas e objecções das autoridades centrais do Estado as Regiões têm vindo a estabelecer, durante os últimos anos, uma densa rede de relações externas inter-regionais de conteúdo, fundamentalmente, económico e cultural, em especial no quadro comunitário.
É assim que compete aos órgãos de governo próprio da Região em aplicação do princípio da subsidiariedade, promover a cooperação inter-regional no âmbito da União Europeia, como instrumento básico para a construção de uma Europa fundada nos princípios democráticos, mas, também, privilegiar relações com outras realidades regionais insulares e atlânticas.
Do mesmo modo a fim de prestar a assistência necessária às comunidades açorianas fora da Região, os órgãos de governo próprio poderão formalizar convénios e acordos de cooperação com instituições públicas e privadas das Regiões onde se encontrem, bem como celebrar convénios e acordos de cooperação com outras Regiões para o desenvolvimento e gestão de âmbitos de interesse comum, incluindo a possibilidade de estabelecer instrumentos comuns de cooperação, se assim for aprovado pelas seus respectivos órgãos de governo próprio, fomentando a troca de experiências e de informações, mas sobretudo abrindo a Região a novos mercados e investidores.
Finalmente a Região deve, ainda, desenvolver uma política própria de solidariedade e de cooperação com outras Regiões, estabelecendo para tal efeito os programas e acordos pertinentes, assim como com as organizações não governamentais e as instituições públicas e privadas com as quais resulte necessário garantir a efectivação e eficácia das políticas de cooperação.

Uma representação externa.

O papel das entidades subnacionais na escala mundial e particularmente a actividade das Regiões em Bruxelas e o tipo de relação que estas desenvolvem junto das instituições internacionais é normalmente qualificado de lobby. Essa qualificação parece, contudo, ficar aquém da realidade actual, pois essas entidades regionais são, com efeito, canais institucionalizados de relacionamento com as instituições internacionais podendo participar nos seus trabalhos, actividades que ultrapassam o simples esquema de representação de interesses económicos.
Mais, tratando-se de aglomerados dos variados centros de interesses da respectiva Região, quer públicos quer privados, e dos variados quadrantes sócio-económicos (governos, municípios, associações comerciais, agrícolas, de pescadores, universidades) essas representações podem assumir a forma de consórcio, sociedade anónima, fundação, associação, etc, e enquadrar-se numa estratégia de projecção internacional e de defesa dos interesses da uma Região no exterior. Assim, a consagração em sede de Estatuto da possibilidade de instalação de infra-estruturas no exterior ou do aproveitamento da figura das Casas dos Açores espalhadas pelo mundo (motivando uma representação efectiva e estruturada nos EUA e no Brasil) é, como vemos, uma estratégia que pode aliar-se à necessidade premente de promoção dos Açores e dos seus produtos. Concebidas como um núcleo de parcerias essas estruturas/entidades, conforme o espaço em que se desenvolvam, podem acentuar mais o seu carácter técnico, promocional ou de efectivação dos laços com a diáspora, constituindo um instrumento essencial para a manutenção dos vínculos da Região com os membros das comunidades açorianas no exterior, assim como para o desenvolvimento e fomento das relações comerciais, culturais, políticas e institucionais com as regiões que os acolhem.
Uma filosofia destas permite aos órgãos de governo próprio desenvolver fora do território da Região a actividade necessária para a defesa e promoção dos interesses do povo açoriano, potenciando a subscrição de acordos, convénios e protocolos no âmbito das suas próprias competências.


A dialéctica do princípio da lealdade constitucional.

Um acordo à volta destas figuras de participação internacional e com estas características terá o valor extra de possibilitar uma participação mais dinâmica dos Açores, logo do Estado português, no plano internacional. Significa a implicação directa da pluralidade de poderes político-sociais existentes no Estado num projecto de indubitável e inegável interesse nacional. Significa, acima de tudo, uma mostra de que em Portugal o princípio da lealdade constitucional é o caminho de duas vias que deve ter assento entre nós.

Sé, 4 de Novembro de 2005