domingo, novembro 13, 2005

JANELAS ALTAS (IX)

Para uma revisão estatutária.

Há um ano atrás, na edição de 5 de Setembro, escrevi que uma estratégia dirigida à valorização exterior da Região, correspondente à sua realidade político-constitucional e à sua posição estratégica entre os continentes Europeu e Americano, não pode interpretar-se como rival da política exterior do Estado, devendo, antes, ser concebida como uma dimensão inevitável do exercício da autonomia numa sociedade internacional cada vez mais inter conectada e aberta, onde as competências regionais adquirem uma crescente relevância além das fronteiras do Estado. A acção exterior regional, em geral, e a participação na política comunitária, em particular, devem ser, pois, interpretadas, fundamentalmente, como uma melhoria no exercício da gestão pública. Essas palavras não perderam actualidade e, vendo reforçada a sua acuidade, tornam a sua previsão em sede de Estatuto Político-Administrativo incontornável.

As relações com a Europa.
Não obstante as frustrações e os desencantos relativos à falta de correspondência entre o limitado alcance do fenómeno regional na Europa institucional e a dimensão política que alguns lhe querem atribuir, verifica-se a permanência de uma forte convicção sobre o papel das Regiões na construção da nova arquitectura europeia. Partilham dessa convicção naturalmente as forças políticas nacionalistas, regionalistas e autonómicas que consideram dever do Estado aceitar e potenciar o peso das políticas regionais e bem assim providenciar o reconhecimento institucional das regiões no quadro da União Europeia por forma a garantir não só a participação nas fases ascendente e descendente das políticas europeias como, ainda, a sua presença oficial em Bruxelas.
Neste enquadramento reforçamos a defesa da tese de que o Estado português deve possibilitar a participação activa do Governo Regional nos diferentes procedimentos de tomada de decisão das instituições comunitárias nas matérias que afectem a suas competências. Nos termos das normas europeias e no respeito pela Constituição, a Região pode dispor de representação directa nos órgãos da União Europeia e os seus representantes podem tomar parte nas delegações do Estado Português no Conselho de Ministros da União Europeia em todos aqueles assuntos que afectem o conteúdo das suas competências. Para esse efeito a administração central e a regional autónoma devem regular os sistemas de coordenação necessários que garantam a participação efectiva da Região na elaboração, programação, distribuição e execução dos diferentes fundos comunitários.
No seguimento desta filosofia a Região não pode deixar de prever no seu Estatuto a constituição de um círculo eleitoral próprio, que eleja dois deputados para o Parlamento Europeu.

Negociações internacionais.
O exercício das competências autonómicas permite realizar actuações de relevância exterior é certo, mas daqui não se pode depreender que a Região seja plenamente livre no sentido de poder levar a cabo qualquer actividade externa, antes que deve respeitar as matérias base das relações internacionais, como o ius contrahendi ou a criação de obrigações e responsabilidades internacionais, inerentes à política externa de um Estado. O problema radica, mais uma vez, em torno dos contornos pouco precisos de muitos dos preceitos constitucionais e doutrinários. É aí que o novo Estatuto deve mover-se, recolhendo algumas precisões relativas à actividade exterior da Região.
Nesse sentido, normal será o reconhecimento à Região do poder de levar a cabo acções de relevância externa no exercício das suas competências, submetidas, se a tal houver necessidade, ao parecer de uma comissão bilateral paritária. Do mesmo modo a Região deve poder passar a ter presença directa nos organismos internacionais cuja própria regulação de acesso e participação assim o permita, e em especial nos relacionados com a língua, a cultura, com a cooperação inter-regional, o desenvolvimento sustentável e o ambiente.
Além disso, a formalização por parte do Estado Português de tratados ou acordos internacionais que acarretem uma alteração ou restrição das competências previstas no Estatuto exige uma consulta prévia consequente aos órgãos de governo próprio da Região. O Estado deve, ainda, garantir a efectiva participação do Governo Regional nas negociações de tratados e acordos que acarretem uma alteração ou restrição das competências previstas no Estatuto através de representação na delegação nacional que negociar o tratado ou o acordo, bem como nas respectivas comissões de execução ou fiscalização. Aliás, estes direitos já estão, constitucional e estatutariamente, consagrados o que lhes tem faltado é a dimensão prática que, a nosso ver, só pode ser garantida por acordos entre a administração central e a regional autónoma que regulem sistemas de coordenação necessários à participação efectiva da Região nesses processos.
Por outro lado, também já está previsto que os benefícios decorrentes de tratados e acordos internacionais directamente respeitantes à Região ou que nela tenham reflexo serão afectados a projectos de desenvolvimento desta, contudo, mais uma vez, esta disposição só será plena se a administração central delegar nos órgãos de governo próprio da Região as competências necessárias à boa execução desses tratados e acordos internacionais.
Finalmente, a Região deve, também, poder solicitar ao Governo da República a celebração de tratados ou acordos internacionais em matérias do seu directo interesse, em especial, as derivadas da sua situação geoestratégica ou da sua condição de região insular europeia ultraperiférica, assim como os que permitam estreitar laços sócio-económicos e culturais com aqueles países ou regiões onde se encontrem comunidades açorianas.

Cooperação inter-regional.
Apesar das limitações formais impostas por muitas constituições e das reservas e objecções das autoridades centrais do Estado as Regiões têm vindo a estabelecer, durante os últimos anos, uma densa rede de relações externas inter-regionais de conteúdo, fundamentalmente, económico e cultural, em especial no quadro comunitário.
É assim que compete aos órgãos de governo próprio da Região em aplicação do princípio da subsidiariedade, promover a cooperação inter-regional no âmbito da União Europeia, como instrumento básico para a construção de uma Europa fundada nos princípios democráticos, mas, também, privilegiar relações com outras realidades regionais insulares e atlânticas.
Do mesmo modo a fim de prestar a assistência necessária às comunidades açorianas fora da Região, os órgãos de governo próprio poderão formalizar convénios e acordos de cooperação com instituições públicas e privadas das Regiões onde se encontrem, bem como celebrar convénios e acordos de cooperação com outras Regiões para o desenvolvimento e gestão de âmbitos de interesse comum, incluindo a possibilidade de estabelecer instrumentos comuns de cooperação, se assim for aprovado pelas seus respectivos órgãos de governo próprio, fomentando a troca de experiências e de informações, mas sobretudo abrindo a Região a novos mercados e investidores.
Finalmente a Região deve, ainda, desenvolver uma política própria de solidariedade e de cooperação com outras Regiões, estabelecendo para tal efeito os programas e acordos pertinentes, assim como com as organizações não governamentais e as instituições públicas e privadas com as quais resulte necessário garantir a efectivação e eficácia das políticas de cooperação.

Uma representação externa.

O papel das entidades subnacionais na escala mundial e particularmente a actividade das Regiões em Bruxelas e o tipo de relação que estas desenvolvem junto das instituições internacionais é normalmente qualificado de lobby. Essa qualificação parece, contudo, ficar aquém da realidade actual, pois essas entidades regionais são, com efeito, canais institucionalizados de relacionamento com as instituições internacionais podendo participar nos seus trabalhos, actividades que ultrapassam o simples esquema de representação de interesses económicos.
Mais, tratando-se de aglomerados dos variados centros de interesses da respectiva Região, quer públicos quer privados, e dos variados quadrantes sócio-económicos (governos, municípios, associações comerciais, agrícolas, de pescadores, universidades) essas representações podem assumir a forma de consórcio, sociedade anónima, fundação, associação, etc, e enquadrar-se numa estratégia de projecção internacional e de defesa dos interesses da uma Região no exterior. Assim, a consagração em sede de Estatuto da possibilidade de instalação de infra-estruturas no exterior ou do aproveitamento da figura das Casas dos Açores espalhadas pelo mundo (motivando uma representação efectiva e estruturada nos EUA e no Brasil) é, como vemos, uma estratégia que pode aliar-se à necessidade premente de promoção dos Açores e dos seus produtos. Concebidas como um núcleo de parcerias essas estruturas/entidades, conforme o espaço em que se desenvolvam, podem acentuar mais o seu carácter técnico, promocional ou de efectivação dos laços com a diáspora, constituindo um instrumento essencial para a manutenção dos vínculos da Região com os membros das comunidades açorianas no exterior, assim como para o desenvolvimento e fomento das relações comerciais, culturais, políticas e institucionais com as regiões que os acolhem.
Uma filosofia destas permite aos órgãos de governo próprio desenvolver fora do território da Região a actividade necessária para a defesa e promoção dos interesses do povo açoriano, potenciando a subscrição de acordos, convénios e protocolos no âmbito das suas próprias competências.


A dialéctica do princípio da lealdade constitucional.

Um acordo à volta destas figuras de participação internacional e com estas características terá o valor extra de possibilitar uma participação mais dinâmica dos Açores, logo do Estado português, no plano internacional. Significa a implicação directa da pluralidade de poderes político-sociais existentes no Estado num projecto de indubitável e inegável interesse nacional. Significa, acima de tudo, uma mostra de que em Portugal o princípio da lealdade constitucional é o caminho de duas vias que deve ter assento entre nós.

Sé, 4 de Novembro de 2005