domingo, novembro 20, 2005

JANELAS ALTAS (VIII)

Para uma revisão Estatutária

Um ponto central das reivindicações autonomistas, e que não se pode deixar de ter presente, foi de que as receitas geradas na Região deveriam pertencer à própria. Se em 1895 era compreensível que as receitas que o Estado de cá levava eram em muito superiores às necessidades de despesa das mesmas, tal ideia é hoje descabida, pois que as novas ambições autonomistas exigem um nível de financiamento muito superior. Deixar uma Região atrasada entregue às suas próprias receitas é a melhor forma de perpetuar esse atraso. Foi, portanto, nesta lógica que em 1976 se acolheu na Constituição e no Estatuto um auxílio financeiro do Estado como forma de expressão da solidariedade nacional. Contudo, mais uma vez, o que nasceu na melhor das intenções (presume-se) trouxe no seu âmago «o ovo da serpente» que se tem feito revelar em decisões unilaterais ao longo dos últimos 30 anos.

Que autonomia financeira?
Em relação a princípios a ter em conta como referenciais no momento de determinar a amplitude da nossa autonomia, surgem o da autonomia financeira (na receita e na despesa) e o da solidariedade. Contudo, não há uma precisão institucional de como articular estes dois princípios. Pelo contrário, só no caso do princípio da solidariedade a Constituição, sem predeterminar qualquer critério de configuração, prevê a alínea g) do n.º 1 do artigo 227.º que as regiões autónomas sendo pessoas colectivas territoriais e têm o poder, a definir nos respectivos estatutos, de «dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas» o que deve ser integrado com o n.º 3 do artigo 229.º que dispõe que «as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas são reguladas através da lei prevista na alínea t) do artigo 164.º» e com a alínea g) do artigo 9.º que dispõe ser tarefa fundamental do Estado «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira». Esclarecidos? Pois, eu também não!
No mesmo sentido, não se pode descurar a vertente garantística inerente à consagração do princípio da autonomia financeira. Merecem aqui especial atenção os recursos financeiros que integram a «fazenda» da Região e o seu regime de gestão. A um enunciado amplo dos diferentes recursos entre os quais cabe destacar os impostos próprios e a participação nos recursos do Estado, não segue, contudo, uma indicação preferencial de como se devem articular estes recursos nem a sua proporção no sistema global do financiamento.
É nestes termos que aqui se vem defender que ao Estatuto cabe uma função mais destacada na determinação do âmbito da autonomia financeira da Região. O obstáculo mais importante que se pode interpor entre este esforço e o espaço de acção é o papel constitucionalmente atribuído à Lei de Finanças Regionais. Sobre ela não se esconde a importância que tem tido na definição do nosso regime financeiro. Conquista incontornável dos últimos anos de governação, esta lei tem tido, no entanto, um protagonismo maior do que lhe permite retirar a Constituição, com uma expansão de conteúdos que vai muito além do previsto, o que também só foi possível devido às próprias normas estatutárias não se terem perfilado convenientemente em matéria financeira.
É que, em bom rigor, a reserva da Lei de Finanças Regionais em matéria financeira apenas recai sobre as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas, o que já não é pouco seja lá o que isso queira em verdade compreender, cabendo o possível alcance para definir o regime financeiro da Região, pelo menos no que cabe ao regular exercício das suas competências e de gestão dos seus recursos, ao Estatuto.

O Estatuto e a solidariedade inter-territorial.
As opções a considerar são diversas e de alcance múltiplo. No Estatuto poderão prever-se fórmulas que combinem em maior ou menor grau de intensidade um modelo baseado numa nova filosofia de gestão tributária por parte da Região conjugada com um novo conceito de solidariedade inter-regional (com/sem um contributo regional para o Orçamento do Estado; com/sem uma compensação pelos serviços fundamentais do Estado que esta Região presta no seu território), e, posteriormente, quantificáveis em sede de Lei de Finanças Regionais. Um modelo como este, em resultado do qual se deverá garantir a suficiência financeira para o pleno auto-governo só pode servir para orientar, do ponto de vista estatutário, uma especial e transparente implementação do que é o princípio da solidariedade.
Fundamentalmente, o que cabe destacar, agora, é que no movimento de reforma do Estatuto há um espaço suficientemente amplo para caracterizar e definir o nosso regime financeiro, sem que se esqueçam, pois o Estatuto também não deixa de ser uma lei nacional, as tarefas fundamentais do Estado que desde 76 foram, em pleno, assumidas pela Região, tais sejam as da educação e saúde, de cujos respectivos meios financeiros nunca vieram acompanhadas (por exemplo, recentemente, as comunidades autónomas espanholas conseguiram um acordo histórico com a criação de um fundo de solidariedade nacional para o financiamento específico da saúde).
A tudo isto acresce que o actual Estatuto não prevê os instrumentos suficientes para garantir um espaço substancial da autonomia financeira na sua dupla vertente de garantia de receitas e liberdade de despesas. Sempre se deve ter presente que a via dos impostos próprios pode estar enquadrada num contexto bem mais preciso se o modelo de financiamento se basear numa ampla adaptação dos impostos estatais, com faculdades normativas e de gestão tributária própria, sempre se podendo incluir algumas regras que permitam definir a margem de actuação da Região em questões fiscais candentes como as da dupla insularidade ou as do mecenato cultural, tecnológico ou de investigação, social e ambiental.
A vertente da autonomia das despesas é uma vertente especialmente importante garantir e um elemento chave para o exercício das competências substantivas de que dispõem as Regiões Autónomas, uma vez que supõe o reconhecimento de uma margem de liberdade para determinar o destino e a orientação do gasto público de acordo com os objectivos da política social que exprimem as instituições regionais.
Estas margens de autonomia financeira foram, especialmente, condicionadas como o regime da função pública em 1989 ou mais recentemente através da Lei de Estabilidade Orçamental com a limitação de limites directos à competência de endividamento regional. É assim que se defende que o Estatuto pode, e deve, conter algumas determinações claras no sentido de evitar, ao menos, uma imposição unilateral de limites derivados de políticas económico-financeiras nacionais. A previsão no Estatuto de um princípio de negociação prévia ou, de participação, antes da adopção destas medidas de estabilidade é uma fórmula possível tal como o será deduzir do princípio da autonomia financeira a impossibilidade de se estabelecerem mecanismos procedimentais de tutela e controlo estatal (v.g. a criação de uma entidade independente que tutele e fiscalize as contas da Região junto da Assembleia Legislativa, enquanto órgão de governo próprio com legitimidade directa).

O Estatuto e o fomento regional.
No terreno económico-financeiro, consolidaram-se nos últimos anos poderes de despesa ao nível do Estado que permitem realizar políticas de fomento inerentes às suas competências sobre planificação, o que permitiu ao Estado consignar algumas despesas em sede de orçamento de Estado (v.g. subsídios e subvenções a particulares e empresas). Ora, este reconhecimento tem repercussão directa nas competências sectoriais, que incluem poderes de regulação e/ou execução, atribuídas à Região. Se, por um lado, se admite o princípio da intervenção estatal mediante o reconhecimento de um poder de despesa, por outro, deve conciliar-se este poder com as regras de distribuição de competências aplicáveis aos sectores das medidas de fomento. Isto obriga a uma integral territorialização dos fundos estatais para permitir a sua eficaz gestão por parte das Regiões, sendo solução necessária condicionar por via estatutária, e não pela Lei de Finanças Regionais, este poder de despesa, com base nas competências assumidas pela Região sobre sectores que são objecto das suas medidas de fomento.

Uma nova filosofia financeira.
As reflexões que acabamos de fazer permitem uma alteração do tratamento estatutário da «fazenda» da Região que vai muito além do simples enunciado de receitas. Bem sabemos que «a região moderna terá de ser uma região modesta» e que não se pode deixar de tentar prosseguir o caminho de substituição do público pelo privado. Mas, neste século XXI, é impensável ignorar as características próprias do arquipélago e o esforço em infra-estruturas que temos de continuar a fazer. Muito provavelmente a autonomia financeira, nas palavras de Paz Ferreira, “terá que ser repensada, terá que passar a ter como ponto de partida, o montante global da despesa regional e não das receitas próprias da Região” sob pena de apenas dispormos «de receitas de vida e despesas de morta», repetindo-se tempos em que os órgãos de governo próprio funcionavam como simples «pagadorias».
Optar por uma solução deste tipo não significa abdicar das ideias ou valores autonomistas, mas a clarificação de que as condições para o desenvolvimento da autonomia são, hoje, diversas. É nestes termos que defendo que a autonomia deve encontrar o seu quadro de desenvolvimento numa nova filosofia de solidariedade inter-regional, com uma vertente nacional clarificada, mas, sobretudo, com uma dimensão europeia e internacional que lhe assegure os meios necessários à sua estabilidade e evolução. Sobre esta imprescindível vertente externa, para o novo rumo autonómico, falaremos em próxima oportunidade.

Sé, 28 de Outubro de 2005