domingo, maio 17, 2009

DA SORTE E DA IMPERFEIÇÃO…

Pago os meus impostos, não fumo, não tenho animais domésticos, não cuspo para o chão, não bato em crianças nem em mulheres, ando a pé, sou tolerante, tenho boas relações de vizinhança e profissionais. Mas, bebo às refeições, não vou à missa, não gosto de touradas à corda e gosto de touros e de toureio apeado com sorte de varas ou com touros de morte. Sim, estou com o primeiro vulto da filosofia espanhola do século XX, Ortega y Gasset, quando digo que, em matéria de touros, tiro “férias da humanidade” (1). Sou um Homem, sou imperfeito e admito a minha imperfeição civilizacional perante os ditames da sociedade do politicamente correcto.
Serve esta genuflexão pública a propósito do intolerante debate sobre a reintrodução da sorte de varas nos Açores, e horas antes de saber se a mesma terá aprovação na Assembleia Legislativa.
Conforme corre, invocando princípios éticos e filosóficos, no entender de alguns, essa decisão pode corresponder a um retrocesso civilizacional. Ora, não negando a solidez de alguma argumentação, a verdade é que estou mais seguro desse retrocesso na incapacidade de ouvir, de permitir a expressão de uma opinião ou de um gosto divergente, do que na reintrodução da sorte de varas nos Açores.
Filosoficamente não ficarei assim tão mal acompanhado se citando Ortega y Gasset considerar que “Somos de uma condição tão paradoxal que cada dia requer maior artifício dar-nos o gosto de ser algumas vezes «seres naturais». Mas por grande e engenhoso que esse artifício seja resultará vão se aquele instinto feroz, já evanescente, se apaga por completo na nossa espécie”, por isso, “necessitamos de conservar esse acre impulso que do ante-home herdámos. Só ele nos permite o luxo maior de todos que é poder gozar umas férias de humanidade mediante a nossa autêntica «imersão na Natureza»” reabilitando o que ainda se tem de animal “e isto somente pode consegui-lo pondo-se em relação com outro animal”.

E, no domínio da Ética, volto a socorrer-me do filósofo espanhol quando, não questionando a legitimidade dos interesses da sociedade protectora dos animais, problematiza as suas ideias: “É de melhor ética que o touro bravo – uma das formas mais antigas, com rigor arcaica, extemporânea, dos bovídeos – desapareça como espécie e que, individualmente, morra no seu prado sem que mostre a sua gloriosa bravura?”, ou, quando conclui que “Evitar o sofrimento é uma norma ética; mas nada mais do que uma, e somente adquire dignidade de mandamento quando se articula com as restantes.”
Assim, na realidade, estaremos longe de um dogma. Aliás, a única verdade insofismável é que os interesses em causa não se conseguem auto-regular. Daí o recorrente apelo à intervenção pública para uma ponderação dos valores em causa. Nessa sequência, comungo, com Tomaz Dentinho, em como “a reintrodução da sorte de varas nos Açores tem efeitos privados, que interferem apenas com os que oferecem e procuram o espectáculo, e tem porventura efeitos públicos” (2), precisando que os efeitos públicos só existem, nesta matéria, pela imperfeição das regulações sociais, ou seja, pela ausência de auto-regulação.
Chegado aqui, impõe-se que diga que, na ponderação das variáveis, respeito pelo bem-estar animal e liberdade individual de assistir ao espectáculo tauromáquico completo, entendo que, na Região, só o povo da Ilha Terceira terá uma suficiente ligação natural ao touro que lhe permita questionar, ética e filosoficamente, se prefere que ele morra na lide ou no «mato» sem que mostre a sua gloriosa bravura. E é, por isso, que defendo que é, apenas, nessa realidade que a entidades públicas se deverão centrar: limitar a sorte de varas à Ilha Terceira, regulamentando um determinado número de lides por ano. É esta a minha opinião sobre um tema que não é nem «fracturante» nem prioritário na sociedade açoriana. Tomara outros se encontrem na praça pública com tamanho empenho e argumentação…

(1) Sobre a Caça e os Touros. Livros Cotovia, 2004
(2) http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=16180