NO «CAOSMOS» (*)
“De vez em quando, é preciso vir um poeta para limpar a língua” disse Jorge Silva Melo no 80.º aniversário de António Ramos Rosa (Faro, 17/10/1924). Pois, de vez em quando é preciso trazer Ramos Rosa. Dou conta do seu relevo na minha estante ao saber que o Pen Club o indicou (com Herberto Hélder) para candidato ao Nobel da Literatura, quase 50 anos depois do lançamento do seu primeiro livro (O Grito Claro, 1958). Inconsciências conscientes do maior, e mais galardoado, poeta português vivo (Prémio Pessoa 1988; Grande Prémio Internacional de Poesia, 1990, Poeta Europeu da Década, 1991; Pen Club de Poesia, 1980 e 2005), cuja contemporaneidade foi, curiosamente, dada por uma banda nacional de hip-hop (Da Weasel) - “Não posso adiar o amor para outro século/…/Não posso adiar o coração” -, lembram-se?
Como a sua geração, Ramos Rosa começou por responder às exigências de resistência à Ditadura - “Sou um funcionário apagado/Um funcionário triste” -, acompanhando a retórica e imaginário neo-realista e surrealista -“Quereria gritar: Dêem-me árvores para um novo recomeço!/…/Ó boi da paciência que fazes tu aqui?”. Depois, após o encontro com a poesia de Éluard, numa constelação simples, a “nudez do verbo”, a “desmaterialização das coisas e da língua” (em que podemos agrupar alguns núcleos em torno de terra/ar/água, sol/sombra, pedra/corpo), a poesia «ramos-rosiana» constitui-se como “respiração incessante cheia de palavras inaugurais”. A “matéria do real e a matéria do poema” acompanha-o entre os anos 60 e 80 - “ó sabor antes de mim/ó quanto eu não sabia e tudo em mim sabia” -, de acordo com a ruptura e despojamento que caracteriza a arte no século XX. Um poeta que escreve para que “apareçam certas palavras, para que essas palavras digam qualquer coisa que só elas poderiam dizer. Em vez de a palavra estar pendente de qualquer coisa, é já qualquer coisa: criação”. Um poeta sem musa “porque o verdadeiro destinatário do poeta é o poema” - “É por ti que escrevo que não és musa nem deusa/mas a mulher do meu horizonte”-, pois o amor, em Ramos Rosa, reconhece-se sem lírica - “Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa/fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz” -, e “a matéria é só uma, terrestre e divina”. Um poeta “tão francês como português”, “influenciável e um pouco plagiador” que, apesar da recente "reconciliação com as palavras e com o discurso" (e publicidade), tem permanecido n’ «A dança entre o sim e o não» da modernidade, esse porto "anterior a todos os portos", segundo Eduardo Lourenço, no «afirmar/interrogar o Real», na «opacidade/transparência» da relação (desejo) do sujeito e o mundo - “Estou vivo e escrevo sol”.
No «caosmos» (neologismo de preferência) o poeta-paradoxo (quanto mais poesia escreve, perto de 60 publicações, menos nos permite falar sobre a sua obra), diz-nos que vivemos o tempo de Heraclito “o caminho que vai para baixo é o caminho que vai para cima”. Ainda assim, António Ramos Rosa -“Escrever [um Nobel] seria amar-te? ”
(*) Baseado em: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998; António Ramos Rosa - Antologia Poética. Pub. D. Quixote, 2001; Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Ed. Cotovia, 2002; Suplemento “Mil Folhas”. “Público”, 23 de Outubro de 2004
Publicado no Suplemento de Cultura do Açoriano Oriental
Como a sua geração, Ramos Rosa começou por responder às exigências de resistência à Ditadura - “Sou um funcionário apagado/Um funcionário triste” -, acompanhando a retórica e imaginário neo-realista e surrealista -“Quereria gritar: Dêem-me árvores para um novo recomeço!/…/Ó boi da paciência que fazes tu aqui?”. Depois, após o encontro com a poesia de Éluard, numa constelação simples, a “nudez do verbo”, a “desmaterialização das coisas e da língua” (em que podemos agrupar alguns núcleos em torno de terra/ar/água, sol/sombra, pedra/corpo), a poesia «ramos-rosiana» constitui-se como “respiração incessante cheia de palavras inaugurais”. A “matéria do real e a matéria do poema” acompanha-o entre os anos 60 e 80 - “ó sabor antes de mim/ó quanto eu não sabia e tudo em mim sabia” -, de acordo com a ruptura e despojamento que caracteriza a arte no século XX. Um poeta que escreve para que “apareçam certas palavras, para que essas palavras digam qualquer coisa que só elas poderiam dizer. Em vez de a palavra estar pendente de qualquer coisa, é já qualquer coisa: criação”. Um poeta sem musa “porque o verdadeiro destinatário do poeta é o poema” - “É por ti que escrevo que não és musa nem deusa/mas a mulher do meu horizonte”-, pois o amor, em Ramos Rosa, reconhece-se sem lírica - “Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa/fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz” -, e “a matéria é só uma, terrestre e divina”. Um poeta “tão francês como português”, “influenciável e um pouco plagiador” que, apesar da recente "reconciliação com as palavras e com o discurso" (e publicidade), tem permanecido n’ «A dança entre o sim e o não» da modernidade, esse porto "anterior a todos os portos", segundo Eduardo Lourenço, no «afirmar/interrogar o Real», na «opacidade/transparência» da relação (desejo) do sujeito e o mundo - “Estou vivo e escrevo sol”.
No «caosmos» (neologismo de preferência) o poeta-paradoxo (quanto mais poesia escreve, perto de 60 publicações, menos nos permite falar sobre a sua obra), diz-nos que vivemos o tempo de Heraclito “o caminho que vai para baixo é o caminho que vai para cima”. Ainda assim, António Ramos Rosa -“Escrever [um Nobel] seria amar-te? ”
(*) Baseado em: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998; António Ramos Rosa - Antologia Poética. Pub. D. Quixote, 2001; Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Ed. Cotovia, 2002; Suplemento “Mil Folhas”. “Público”, 23 de Outubro de 2004
Publicado no Suplemento de Cultura do Açoriano Oriental
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