terça-feira, outubro 31, 2006

DO FILISTINISMO AO ENTRETENIMENTO - NOS 100 ANOS DE HANNAH ARENDT


A melhor celebração do centenário do nascimento de Hannah Arendt (14/10/1906) será ler a sua obra. A melhor homenagem neste suplemento é lembrar a sua visão da cultura (*). O seu interesse pelo artista, numa sociedade de massas, não se deveu tanto ao individualismo subjectivo mas ao facto dele ser «o autêntico produtor desses objectos que cada civilização deixa atrás de si como quinta-essência e perdurável testemunho do espírito que a animava». Sabemos que o antagonismo entre cultura e sociedade é anterior à sociedade de massas. Todo o desenvolvimento da arte moderna partiu dessa oposição. O «filistinismo» moderno que se manifestava (?) no monopólio da cultura pela sociedade, adequando-a aos seus fins como arma de progressão e status social, colocou (?) em causa o estatuto objectivo do mundo cultural e a perenidade dos bens culturais, enquanto «único critério não social e autêntico» para os avaliar. Os objectos culturais foram (?), inicialmente, desprezados por inúteis e, depois, apropriados como moeda de compra de uma posição social mais elevada, ou de maior auto-estima, tornando-se valores como os outros. Ora, tudo seria aceitável (ex: a arte ao serviço da educação), então como agora, desde que se tenha consciência que lhe estamos a dar usos contra natura. Vejamos que o problema com os «filisteus educados» não está em que leiam os clássicos mas que os leiam com o intuito de se auto-aperfeioar.
Qual a principal diferença entre a sociedade moderna e a sociedade de massas? Aquela desejava a cultura, valorizando e desvalorizando os objectos culturais como mercadorias sociais, enquanto esta deseja o entretenimento. Contudo, o que poderia representar um perigo menor, já assim não é, pois que a sociedade de massas se apropria dos objectos culturais para os consumir, ou destruir, modificando-os no sentido de facilitar e promover o entretenimento (reescrever, condensar, reproduzir o kitsch, adaptar). É que a «cultura diz respeito a objectos e é um fenómeno do mundo; o entretenimento diz respeito a pessoa e é um fenómeno da vida». À vida interessa o elemento funcional do objecto cultural, a satisfação da necessidade, não a sua coisicidade que perdurará no tempo. Isto não é cultura de massas mas sim «entretenimento de massas» representativo de uma sociedade de consumo que usa o seu tempo livre em função do entretenimento. Esta sociedade de consumidores «é incapaz de defender o mundo e as coisas que pertencem em exclusivo ao espaço de aparecer no mundo», já que a sua atitude (consumo) em relação aos objectos, lhes é ruinosa. Acreditar que se tornará mais cultivada à medida que o tempo passa e que a educação desempenhe o seu papel constitui, na visão de Arendt, que aqui sublinho, «um erro fatal», ao qual, no meu sentir, teimamos querer, apenas, contrapor as mais puras expressões do (passado) «filistinismo educado».

(*) A Crise na Cultura – O seu significado Social e Político, in Entre o Passado e o Futuro – Oito exercícios sobre o pensamento político. Ed. Relógio D’Água, 2006

Publicado no Suplemento de Cultura do Açoriano Oriental