domingo, março 12, 2006

INCÓGNITAS

No momento em que se tornam públicas estas linhas, certas estão as saídas de Jorge Sampaio e de Laborinho Lúcio e a tomada de posse de Cavaco Silva. Talvez ainda não se saiba o nome do novo Representante da República para os Açores. Nos corredores da Autonomia surgem novos institutos e novos figurantes. As saídas e entradas em Belém e na Madre de Deus trazem, igualmente, incógnitas em qualquer reflexão sobre a matriz do relacionamento institucional entre Estado e Regiões Autónomas. Procuremos balizá-las.

Em Belém.
Jorge Fernando Branco de Sampaio. Consensualmente apelidado de amigo das autonomias, dedicou muito do seu esforço ne concertação e confluência de posições, procurando que, ao fim de trinta anos de evolução, a querela constitucional sobre as Regiões Autónomas pudesse ser dada por encerrada e o futuro do relacionamento entre o Estado e os órgãos de governo próprio, pudesse ser encarado com uma atitude qualitativamente diferente.
Viu, contudo, o fim do seu mandato ensombrado por declarações menos felizes por ocasião do discurso de abertura do congresso de cidadania (Janeiro de 2005). Tal como, então, tive oportunidade de dizer, não foram aquelas suas palavras que me fizeram esquecer os estímulos que deu às revisões constitucionais de 1997 e de 2004, à alteração das leis eleitorais, à lei de finanças regionais, e o especial cuidado com que lidou com a crise de 98, mas, infelizmente, são elas que transmitem o actual enquadramento presidencial para as autonomias que o novo inquilino esbaterá ou desenvolverá. Convém, pois, aqui, relembrá-las: “De algum modo condicionadas pela pressão de um pretenso conflito entre Estado e regiões Autónomas, as várias revisões constitucionais procuraram responder-lhe através de sucessivas alterações no sistema das autonomias regionais nem sempre bem sucedidas e de sentido muitas vezes falho de coerência. Porém, não obstante a ausência de um sentido evolutivo claro e acessível no estatuto das autonomias regionais, pode dizer-se que a última revisão instituiu um sistema que, não sendo, como qualquer outro, perfeito, dificilmente pode ser alterado, pelo menos de forma substancial, sem provocar rupturas incompatíveis com a natureza de um Estado unitário com Regiões Autónomas. No domínio da racionalização do funcionamento do sistema político regional, das competências legislativas e da representação da República a última revisão constitucional foi até onde se pode legitimamente ir sem pôr em causa a subsistência do Estado unitário e do valor constitucional que representam as autonomias regionais.”

Aníbal António Cavaco Silva. É uma incógnita o seu pensamento presidencial para as autonomias. Ainda que constitucionalmente enquadrada, não sabemos, até que ponto estenderá a sua magistratura de influência na promulgação de uma proposta de revisão do Estatuto Político-Aministrativo, que já se anunciou como reformadora, na aventada alteração da lei de finanças regionais ou na pedagogia nacional das autonomias. Tem pela sua frente um enorme desafio: a descoberta das autonomias como elemento material da democracia portuguesa. Ironicamente, neste contexto, serão, de novo, as palavras de Jorge Sampaio a estabelecerem os parâmetros: “perante o novo quadro são sempre possíveis duas atitudes: ou tomar a última revisão constitucional como mero apoio instrumental de um interminável processo de formulação de sucessivas novas reivindicações e propostas de alteração constitucional ou, ao invés, considerá-la como esforço derradeiro que sela de forma globalmente positiva um longo processo de evolução e maturação institucionais.” Para nós o caminho é claro. Tem agora a palavra o Senhor Presidente da República.

Na Madre de Deus.
Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio.
Um homem superior. Bastas vezes se referenciaram o seu pensamento e a importância da sua magistratura. As entrevistas ao Dário Insular e à RTP/A, na semana passada, mostraram, para quem andava distraído, que o actual Ministro da República pensou o presente e o futuro dos Açores. Teve por sorte uma conjuntura de estabilidade democrática e um Presidente da República que compreendia bem as autonomias. À despedida deixou um conjunto de janelas e perspectivas que a maioria dos políticos regionais, ou não reconhecem, ou não se atrevem a tornar públicas. Perspectivou um 4.º movimento autonómico, sublinhou a importância da revisão estatutária, indicou a projecção externa como um devir a conquistar, adjectivou a Universidade dos Açores, pela produção de conhecimento, como o futuro elemento agregador da autonomia, incentivou a participação cívica, desmistificou o défice institucional democrático, alertou para o enquadramento dos menores em risco. Bem haja Dr. Laborinho Lúcio! A partir de agora só não percebe quem não quer, ou não sabe…

O Representante da República. Nasce ensombrada esta figura antes de ter um rosto. A precipitação de uns sublinhou a tese de que o rosto não seria uma questão de somenos. Desde logo, porque o Representante e a representação da República na Região — que, para além das tarefas e competências específicas que lhe são expressamente atribuídas na Constituição e no Estatuto da Autonomia -, pode ter à sua frente todo um vasto domínio de iniciativa, intervenção e influência política, cultural e social. Mas, mais que de sinecuras ou de protocolo, de que muito se tem falado, importa que o já anunciado enquadramento no Estatuto Político-Administrativo respeite a legitimidade democraticamente sufragada e o equilíbrio institucional interno representativos da evolução das autonomias na teoria geral do Estado. É que a espuma dos dias escondeu, mais uma vez, o porquê das coisas. Não é matéria inócua uma opção autonómica que encerre um «vice-rei», um «amanuense» ou um «agente da autonomia» na Madre de Deus. É a escolha formal por um modelo político de descentralização. O silêncio, até agora comprometido, ou menos responsável, pode ser substituído por um discurso que há vários anos importa lançar: esta «nossa» descentralização político-administrativa caminha para o federalismo dos ricos ou para uma autonomia dos pobres?

Sé, 6 de Março de 2006