domingo, fevereiro 12, 2006

NEBULOSA

Serei eu o único a querer dizer que as alterações constitucionais que originaram a figura do Representante da República foram mais além do que a mudança de nomenclatura com o intuito de reduzir ao residual as funções dos até agora Ministros da República? Custa-me falar de um cargo que considero um anátema nos princípios autonómicos contemporâneos, mas os dias que passam assim o obrigam e algumas dúvidas metódicas teimam em atormentar-me. Na crónica da morte anunciada do cargo de Ministro da República, o parágrafo crucial deu-se na revisão de 97. Aí, o que era certo transformou-se em eventual, a importância ministerial executiva e executória foi condicionada a uma potencial delegação de poderes. Que mais restou à figura que lhe permitiu manter o estatuto constitucional? A iniciativa para a apreciação da constitucionalidade e o veto político! Essas entorses à democracia representativa portuguesa, à legitimidade directa do povo açoriano e madeirense, resistiram! Resistiram em 97 e resistiram em 2004. O que agora mudou? Um ponto crucial: o reforço político do cargo. A sua nomeação e exoneração é da exclusiva responsabilidade do Presidente da República. A «deslocação» constitucional do Representante da República para o feudo de Belém dá-lhe o corpo que não tinha. A indefinição material que rodeia a figura vem reforçar o seu posicionamento. Como assim? Vejamos: os valores de representação da República não me parecem ser os valores imanentes aos do governo da República, executivos, vulgo de ministro. E mais assim se compreenderá quando a fórmula constitucional o coloca junto da maior figura do Estado. São pois, a meu ver, dos valores da República representados na figura do Presidente que cabe cuidar ao Representante da República. Ou seja, a parametrização do cargo de Representante da República deve ser feita pela do Presidente da República. E esse reforço politico é algo que o Ministro da República não tinha e quando, e se, o exerceu fê-lo abusivamente. Um exemplo claro de que Laborinho Lúcio entendeu a mudança, foi a forma como, imediatamente, accionou novos mecanismos de densificação desse espaço. O Congresso da Cidadania não poderia ter sido realizado por um Ministro da República qua tale, só é legítima a sua formulação e concretização face ao novo desenho constitucional. Voltemos então às minhas dúvidas metódicas: que valores, desta República Portuguesa, são os que devem ser representados? Uma nebulosa constitucional, ainda para mais quando nem está prevista qualquer delegação do Presidente da República para a representação desses valores. São valores que virão olhar de modo diferente as novas competências legislativas regionais, também constitucionalmente consagradas, tendo em conta que os universos jurídicos deixarão, potencialmente, de ser unívocos? São valores que tornarão a permitir o entendimento de que a substância da República melhor se espelha na normação de iniciativa nacional? A unidade do Estado, o Estado de direito democrático, a soberania popular, o pluralismo de expressão, a organização política democrática, o respeito e a garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, a separação e interdependência dos poderes, são os únicos valores que, neste momento, a meu ver, poderão justificar a declaração de inconstitucionalidade material, mas face ao novo desenho não será tentador fazê-los, igualmente, prevalecer com um veto de gaveta, ainda que através de uma legitimidade indirecta? Pode vir a ser este o novo entendimento. É este o alerta que aqui coloco, é esta porta que não quero ver aberta. Por outro lado, a autonomia, a solidariedade e a subsidiariedade também não são valores desta República? Logo também caberá ao Representante da República cuidar delas! E cuidar delas em Belém, porque a dinâmica constitucional da figura assim o exige. E quem lhe deve lembrar destas obrigações? Em exclusividade o Presidente da República? Se sim, que papel está, então, reservado aos órgãos de governo próprio da Região? Bem sabemos que, muitas vezes, são as pessoas que fazem os cargos, mas um nóvel Representante da República, somando a nova conjuntura e o futuro Presidente da República, tem larga margem para densificar a sua actuação. É tudo novo! De que forma é que a autonomia, através dos seus órgãos de governo próprio, pode temperar essa novidade? O Dr. Reis Leite, na crónica da semana passada, fez referência ao papel complementar que, nesta matéria, ao Estatuto Político-Administrativo da Região, cabe desempenhar. Se é verdade que, materialmente, nos é vedada qualquer interpretação do texto constitucional, do ponto de vista procedimental nada impede, e até se recomenda, que a institucionalização das relações do Representante da República com os órgãos de governo próprio estejam expressas e enquadradas no futuro texto estatutário. Esta ideia agrada-me, e agrada-me ao ponto de a não querer deixar levar pelo vento…

Sé, 6 de Fevereiro de 2006