domingo, fevereiro 26, 2006

(IN)TOLERÂNCIA

“Menos dogmas, menos disputas. Menos disputas, menos desgraças. Se isto não é verdade, então estou errado.”
Tratado sobre a Tolerância, Voltaire

Agora que, em defesa da liberdade de expressão, por causa de uma dúzia de «rabiscos», alguns nos relembram que estamos em guerra e outros nos convidam a reler Huntington, refugio-me em Voltaire quando redirecciona o combate para o aparelho de justiça, convertendo a questão da tolerância em questão de direitos dos cidadãos. Esta tese, tendo mais de dois séculos para assimilação (segunda metade do sec. XVIII), ainda assim, nem faz unívocas as vozes do Ocidente, conforme o caso das caricaturas dinamarquesas, onde se dividiram de acordo com as conveniências diplomáticas! Assim é que, alguns, muito próximos de nós, parecem esquecer que o fanatismo é uma doença do espírito que é preciso entregar à razão, a qual, «infalivelmente, iluminará os homens». Olvidam a «Razão branda, humana, que inspira a indulgência, afoga a discórdia, fortalece a virtude, torna digna de amor a obediência às leis e mantém-nas ainda melhor do que a força» e insistem em fazer crer que estamos perante um embate civilizacional, uma guerra de culturas. Esta crise mostraria duas civilizações. Mas, a “humilhação” de uma civilização por parte do Ocidente é uma arma poderosa que pesa nas relações de poder e na forma como os Estados defendem os seus interesses. A sua instrumentalização mostra, com mais clareza, a importância que o dito «confronto entre duas civilizações» tem actualmente nas relações de poder. Dispomo-nos, pois, a tirar Huntington da prateleira para, não apenas demonstrar que a sua tese do choque de civilizações não faz tanto sentido como parece, mas, principalmente, que está a ser deturpada nos debates em curso sobre a liberdade de expressão e o islamismo. Há uma afirmação de Huntington, nesse famoso artigo de 1993, «O choque das civilizações», que merece ser examinada: “os conceitos ocidentais diferem fundamentalmente dos que prevalecem noutras civilizações. As ideias ocidentais como o individualismo, liberalismo, constitucionalismo, direitos humanos, igualdade, liberdade, primado da lei, democracia, mercado livre, separação entre igreja e estado, têm, normalmente, pouca ressonância nas culturas Islâmica, Confucionista, Japonesa, Hindu, Budista ou Ortodoxa. Os esforços ocidentais para propagar essas ideias têm produzido, pelo contrário, reacções contra o «imperialismo dos direitos humanos» e a reafirmação dos valores indígenas, como se tem vindo a verificar no fundamentalismo religioso das jovens gerações nas culturas não ocidentais.”
Ora, o que vimos aqui defender é que: não há choque de civilizações, há choque de ideologias. O Islão que vemos na “tv” não é o Islão tradicional. O Islão que anda a queimar bandeiras, o Islão dos atentados de NY, Madrid, Londres, Bali, etc., é uma versão ideológica do Islão. É o Islão feito doutrina armada. Há aqui um conflito de ideologias: o islamismo político contra o ocidente liberal. Uma doutrina totalitária contra a liberdade ocidental. Não cremos que os Estados sejam suficientemente motivados por factores ideológicos ou identitários para se determinarem absolutamente em situações de crise a um critério civilizacional. A verdade é que ao longo dos últimos anos, na maioria dos casos, as fontes de conflitos tiveram mais origem na clássica distribuição de poder no sistema inter-estatal e em aspectos como o acesso a fontes de energia ou acções preemptivas que reflectem o também clássico dilema de segurança. Naturalmente que as diferenças culturais são importantes. E que as tensões de cariz étnico e religioso estão patentes, mas a questão é saber se as diferenças civilizacionais no mundo pós Guerra-Fria são as mais determinantes na análise da origem dos conflitos. Há dimensões que se sobrepõem e que devem ser entendidas de modo articulado como a projecção de poder, a emergência de nacionalismo, a dimensão ideológica, etc. A natureza da questão é, pois, política. O que se discute são relações de poder e, entre outras coisas, o direito a moldar e organizar as leis e as instituições do Estado. Há, inclusive, quem entenda que estamos perante uma luta entre o Islão militante e o Islão moderado patente na espontaneidade, ou não, de algumas manifestações. Por outro lado, se convém não esquecer os estudos internacionais que indicam que a maioria dos países islâmicos (excepto o Paquistão) têm em grande consideração o processo democrático, indicando-o como a forma mais eficiente de governo, rejeitando os autoritarismos e os chamados «líderes fortes», há que dar por seguro que a modernização económica, o capitalismo, não significam automaticamente ocidentalização e, menos ainda, subordinação ao Ocidente como pólo de poder no sistema internacional. Assim, na medida em que cada vez mais os países não-Ocidentais crescem economicamente e ganham peso internacional, é normal que o choque entre interesses instalados e interesses emergentes seja ainda complicado por diferenças culturais.
É deste modo que se explica a anomalia do «choque civilizacional». Ou seja, a tese do choque ideológico permite explicar por que motivo o choque apenas se dá entre o Ocidente e o Islão e não entre o Ocidente e as restantes civilizações identificadas. Mas, a verdade obriga a que, aqui, também, se escreva que os Estados ocidentais, bem como os Estados islâmicos, estão envolvidos numa guerra. Numa guerra contra o fundamentalismo islâmico, do qual o terrorismo transnacional é a expressão com maior visibilidade. Uma guerra ideológica, não cultural, que os põe em causa a ambos. Ora, é essa natureza ideológica que exige que o Ocidente e o Islão moderado actuem sem cedências perante o intolerável.
Começamos com caricaturas, terminamos com caricaturas, deixo-os as duas faces da moeda satírica, na versão do Ocidente e na do Islão, onde, num mundo tolerante, isto devia ter permanecido.

Sé, 19 de Fevereiro de 2006