JANELAS ALTAS (V)
Para uma revisão estatutária.
5 de Agosto de 1980. Passaram 25 anos da publicação do nosso Estatuto Político-Administrativo definitivo. Alguém com responsabilidade se lembrou? Presumamos que sim, mas Agosto é Agosto e, entre as festas de Verão, dificilmente se conceberia uma comemoração demasiado institucional. Pois seja! Contudo, para o presente e futuro do sistema autonómico não conviria esquecer a maioria de uma geração que pôs o seu melhor quando em 76 ratificou a Constituição e quando os seus representantes aprovaram o que viria a ser o primeiro Estatuto autonómico. E bem assim não esqueçamos o que se veio a construir passo a passo, vencendo dificuldades de reflexos políticos centralistas, rotinas administrativas e funcionalidades históricas. Lembremos que todos os sujeitos públicos tiveram de aprender a comportar-se num novo quadro de relações políticas, não só os órgãos centrais do Estado mas, também, as entidades locais e os nossos próprios concidadãos, cuja maioria, talvez, até tenha acreditado que se tinham solucionado, por fim, os problemas históricos que tantas desgraças e atrasos trouxeram à Região. Entre eles pautava-se em lugares cimeiros o da articulação política do Estado, que exigia o reconhecimento de uma sociedade cultural e territorialmente plural. Chegados aqui não seria tempo de avaliar com ponderação e conhecimento como vai a nossa Autonomia estatutária? Ou, que real eficácia terão as formulações actuais da nossa «magna carta»?
Se a experiência descentralizadora realizada em Portugal dura há já tempo suficiente para dizer que alcançou em algumas áreas importância fundamental, as tensões entre quem coloca maior ênfase na unidade e os que o fazem na pluralidade, ou entre aqueles que procuram as forças de carácter centrífugo ou as de carácter centrípedo, continuam inerentes a qualquer sistema quer seja regional, autonómico ou federal, ao que acrescerá as Regiões Autónomas terem surgido num quadro de um Estado com os poderes centrais e locais bem consolidados dificultando a tarefa de encontrar as fórmulas eficazes para as novas entidades políticas.
Feita esta introdução, podemos centrar-nos no objecto concreto deste e dos próximos artigos: o núcleo configurador do desenho autonómico nos anos vindouros. Falo-vos dos princípios da solidariedade e da cooperação, em especial nas relações políticas e administrativas com entidades supra e para autonómicas.
A solidariedade é hoje um elemento fundamental de coesão social e territorial, própria de uma sociedade consciente em si mesma, dos seus limites e debilidades, capaz de analisar criticamente o passado e compreender as suas carências históricas de modo a olhar o futuro. Um elevado grau de solidariedade é sintoma de uma sociedade que alcançou um elevado nível ético e civilizacional e que fundamenta a sua ordenação sobre um contrato social que deve ser lealmente respeitado. Uma sociedade que reconhece a segurança e a prosperidade de todos os cidadãos, mas que não deixa de avaliar as potencialidades de conflito que encerram as desigualdades sejam económicas sejam sociais e o seu grau de influência nos critérios políticos determinados por uma legitimidade democrática. É assim que esta solidariedade, no que nos toca, tanto deve verificar-se horizontalmente - entre as ilhas que constituem a realidade regional e onde o fundo de coesão é mais valia segura -, como verticalmente - entre a administração central e a regional, onde o campo formal mais fértil será a lei de finanças regionais mas em que o Estatuto, materialmente, não pode deixar de ter um papel crucial e enformador das áreas, parâmetros e dos canais dessa relação dialéctica.
Por outro lado, no actual momento do desenvolvimento do nosso sistema autonómico é de admitir de forma unânime que existe um déficite de articulação das relações político-administrativas entre os protagonistas do sistema, ou seja, entre as Regiões Autónomas, naquilo que são consideradas «relações horizontais», tal como se introduz uma excessiva voluntariedade no regime e na praxis das «relações verticais», ou seja, que ligam as Regiões ao aparelho do Estado.
É, pois, prioritário sistematizar procedimentos e instrumentos de cooperação entre os distintos poderes centrais e territoriais, partindo do pressuposto que o nosso sistema de repartição competencial avança no sentido da diminuição das competências exclusivas e se articula em torno das competências concorrenciais, fazendo-o de modo que as Regiões comprovem que a participação nesses procedimentos cooperativos se obtêm maiores e melhores resultados dos que se alcançam fora deste sistema onde pela inexistência de mecanismos de conciliação se configuram constantes mediações não institucionais (tais sejam canais e relacionamentos partidários e/ou pessoais), o recurso contínuo a uma jurisprudência constitucional e as imposições hierárquicas não negociadas ancoradas na recorrente invocação do estado unitário, nomeadamente, pela Assembleia da República.
Falo, assim, de realidades vitais, isto é, do que devemos levar sempre ante os nossos olhos de agentes da autonomia. Realidades vitais que são antes da legislação ou do governo e que estes tratam de maneiras diferentes. Se a vida é incerta e criadora, a legislação é nacional e temporal e a arte de governar quotidiana. Assim, deveremos proceder como legisladores e governantes do nosso tempo de modo a resolvermos as antinomias existentes da realidade autonómica de hoje. Corre-se o perigo de, não havendo garantias suficientes no sistema, agravar o que é um problema estrutural do Estado, com as lamentáveis consequências de o problema ficar sem solução e o sistema sem estabilidade, ao mesmo tempo que a lógica e a coerência do edifício constitucional e dos seus órgãos se erode e distorce exigindo, continuamente, ao Tribunal Constitucional que seja o garante de um processo de descentralização em que as exigências do pragmatismo político têm prevalecido sobre a lógica constitucional.
Os problemas de organização territorial na medida em que se centram em questões de conflito judicializam-se. O estabelecimento, mediante consagração estatutária e legislação de desenvolvimento, seja dos campos funcionais de solidariedade, seja dos instrumentos e mecanismos de cooperação, é uma alternativa sustentável como regra geral para a solução de conflitos relegando a solução judicial para o campo excepcional. Ou seja, a elaboração de uma rede que sistematize e potencie todos os instrumentos de solidariedade e cooperação é uma primeira realidade vital de qualquer iniciativa reformadora do Estatuto, a não ser assim, e não quero mostrar-me apocalíptico, creio que a própria lógica centrífuga e de erosão permanente da actual concepção de um Estado Unitário Regional integrante da União Europeia pode conduzir à pulverização, de facto, de princípios constitucionais como os da autonomia e da subsidiariedade.
Sé, 26 de Agosto de 2005
5 de Agosto de 1980. Passaram 25 anos da publicação do nosso Estatuto Político-Administrativo definitivo. Alguém com responsabilidade se lembrou? Presumamos que sim, mas Agosto é Agosto e, entre as festas de Verão, dificilmente se conceberia uma comemoração demasiado institucional. Pois seja! Contudo, para o presente e futuro do sistema autonómico não conviria esquecer a maioria de uma geração que pôs o seu melhor quando em 76 ratificou a Constituição e quando os seus representantes aprovaram o que viria a ser o primeiro Estatuto autonómico. E bem assim não esqueçamos o que se veio a construir passo a passo, vencendo dificuldades de reflexos políticos centralistas, rotinas administrativas e funcionalidades históricas. Lembremos que todos os sujeitos públicos tiveram de aprender a comportar-se num novo quadro de relações políticas, não só os órgãos centrais do Estado mas, também, as entidades locais e os nossos próprios concidadãos, cuja maioria, talvez, até tenha acreditado que se tinham solucionado, por fim, os problemas históricos que tantas desgraças e atrasos trouxeram à Região. Entre eles pautava-se em lugares cimeiros o da articulação política do Estado, que exigia o reconhecimento de uma sociedade cultural e territorialmente plural. Chegados aqui não seria tempo de avaliar com ponderação e conhecimento como vai a nossa Autonomia estatutária? Ou, que real eficácia terão as formulações actuais da nossa «magna carta»?
Se a experiência descentralizadora realizada em Portugal dura há já tempo suficiente para dizer que alcançou em algumas áreas importância fundamental, as tensões entre quem coloca maior ênfase na unidade e os que o fazem na pluralidade, ou entre aqueles que procuram as forças de carácter centrífugo ou as de carácter centrípedo, continuam inerentes a qualquer sistema quer seja regional, autonómico ou federal, ao que acrescerá as Regiões Autónomas terem surgido num quadro de um Estado com os poderes centrais e locais bem consolidados dificultando a tarefa de encontrar as fórmulas eficazes para as novas entidades políticas.
Feita esta introdução, podemos centrar-nos no objecto concreto deste e dos próximos artigos: o núcleo configurador do desenho autonómico nos anos vindouros. Falo-vos dos princípios da solidariedade e da cooperação, em especial nas relações políticas e administrativas com entidades supra e para autonómicas.
A solidariedade é hoje um elemento fundamental de coesão social e territorial, própria de uma sociedade consciente em si mesma, dos seus limites e debilidades, capaz de analisar criticamente o passado e compreender as suas carências históricas de modo a olhar o futuro. Um elevado grau de solidariedade é sintoma de uma sociedade que alcançou um elevado nível ético e civilizacional e que fundamenta a sua ordenação sobre um contrato social que deve ser lealmente respeitado. Uma sociedade que reconhece a segurança e a prosperidade de todos os cidadãos, mas que não deixa de avaliar as potencialidades de conflito que encerram as desigualdades sejam económicas sejam sociais e o seu grau de influência nos critérios políticos determinados por uma legitimidade democrática. É assim que esta solidariedade, no que nos toca, tanto deve verificar-se horizontalmente - entre as ilhas que constituem a realidade regional e onde o fundo de coesão é mais valia segura -, como verticalmente - entre a administração central e a regional, onde o campo formal mais fértil será a lei de finanças regionais mas em que o Estatuto, materialmente, não pode deixar de ter um papel crucial e enformador das áreas, parâmetros e dos canais dessa relação dialéctica.
Por outro lado, no actual momento do desenvolvimento do nosso sistema autonómico é de admitir de forma unânime que existe um déficite de articulação das relações político-administrativas entre os protagonistas do sistema, ou seja, entre as Regiões Autónomas, naquilo que são consideradas «relações horizontais», tal como se introduz uma excessiva voluntariedade no regime e na praxis das «relações verticais», ou seja, que ligam as Regiões ao aparelho do Estado.
É, pois, prioritário sistematizar procedimentos e instrumentos de cooperação entre os distintos poderes centrais e territoriais, partindo do pressuposto que o nosso sistema de repartição competencial avança no sentido da diminuição das competências exclusivas e se articula em torno das competências concorrenciais, fazendo-o de modo que as Regiões comprovem que a participação nesses procedimentos cooperativos se obtêm maiores e melhores resultados dos que se alcançam fora deste sistema onde pela inexistência de mecanismos de conciliação se configuram constantes mediações não institucionais (tais sejam canais e relacionamentos partidários e/ou pessoais), o recurso contínuo a uma jurisprudência constitucional e as imposições hierárquicas não negociadas ancoradas na recorrente invocação do estado unitário, nomeadamente, pela Assembleia da República.
Falo, assim, de realidades vitais, isto é, do que devemos levar sempre ante os nossos olhos de agentes da autonomia. Realidades vitais que são antes da legislação ou do governo e que estes tratam de maneiras diferentes. Se a vida é incerta e criadora, a legislação é nacional e temporal e a arte de governar quotidiana. Assim, deveremos proceder como legisladores e governantes do nosso tempo de modo a resolvermos as antinomias existentes da realidade autonómica de hoje. Corre-se o perigo de, não havendo garantias suficientes no sistema, agravar o que é um problema estrutural do Estado, com as lamentáveis consequências de o problema ficar sem solução e o sistema sem estabilidade, ao mesmo tempo que a lógica e a coerência do edifício constitucional e dos seus órgãos se erode e distorce exigindo, continuamente, ao Tribunal Constitucional que seja o garante de um processo de descentralização em que as exigências do pragmatismo político têm prevalecido sobre a lógica constitucional.
Os problemas de organização territorial na medida em que se centram em questões de conflito judicializam-se. O estabelecimento, mediante consagração estatutária e legislação de desenvolvimento, seja dos campos funcionais de solidariedade, seja dos instrumentos e mecanismos de cooperação, é uma alternativa sustentável como regra geral para a solução de conflitos relegando a solução judicial para o campo excepcional. Ou seja, a elaboração de uma rede que sistematize e potencie todos os instrumentos de solidariedade e cooperação é uma primeira realidade vital de qualquer iniciativa reformadora do Estatuto, a não ser assim, e não quero mostrar-me apocalíptico, creio que a própria lógica centrífuga e de erosão permanente da actual concepção de um Estado Unitário Regional integrante da União Europeia pode conduzir à pulverização, de facto, de princípios constitucionais como os da autonomia e da subsidiariedade.
Sé, 26 de Agosto de 2005
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