domingo, fevereiro 20, 2005

CONTRA-REFORMA

Por razões profissionais desloquei-me a Ponta Delgada, onde fui bafejado pela sorte de poder assistir à conferência organizada pelo Açoriano Oriental sobre a revisão do sistema eleitoral da Região. E bafejado pela sorte porquê? Porque o Professor Jorge Miranda, enquanto conferencista convidado, lançou uma verdadeira pedrada no marasmo que caracteriza a visão do sistema político nacional, logo regional.
O constitucionalista, mais do que a apresentação, simples e técnica, da sua proposta para revisão do sistema, pôde lançar, aos políticos presentes (e eram vários e com responsabilidades), em jeito de alerta e de desafio, o fermento para que seja a Região a liderar o processo de reforma política nacional introduzindo quer na lei eleitoral quer na previsão estatutária verdadeiros avanços que clarifiquem, dignifiquem e melhorem o sistema político.
Curiosamente, após a conferência lancei mão de um rascunho iniciado no dia de Carnaval (vejam só a animação) sobre os caminhos da reforma política nos Açores, e confirmei que aquilo que por mim podia ser dito e escrito mil vezes, após as palavras de Jorge de Miranda, ganhou e viu reforçada a sua dimensão.
Nestes termos, cavalgando nas ideias que compartilho com aquele ilustre constitucionalista, somo-lhes outras tantas que penso não serem desprezíveis no momento actual:

1- Introdução na lei eleitoral da possibilidade de candidaturas de grupos de cidadãos independentes ao Parlamento Regional. Neste caminho de chamar as forças independentes, até agora trilhado por algumas forças partidárias, raramente a independência prevalece sobre a disciplina e o discurso partidário ou resiste ao vórtice do cartão monocolor. Os termos do que se deveria entender como um cidadão descomprometido partidariamente mas comprometido com o seu eleitorado e a sua introdução no sistema político provoca uma ruptura e uma dinâmica que uma estrutura política representativa do sec. XIX não tem conseguido atingir. Acompanho, pois, Jorge Miranda na interpretação de que à lei eleitoral da Região não é necessária a previsão constitucional para tal desiderato como acontece para a Assembleia da República. A nós basta-nos a vontade, o que já não é pouco.

2- Melhorar o regime das incompatibilidades, de modo a diminuir as fraudes políticas que são as candidaturas dos autarcas ou dos deputados regionais a nacionais e vice-versa, e clarificar as suspensões dos mandatos para desempenho de cargos de nomeação política, porque ser Deputado representante directo e legítimo do povo açoriano não tem igual. A ideia de que alguém titular de um cargo electivo se candidata a outro deve ser dignificada com a obrigação de que o candidato sendo eleito para esse segundo cargo renuncia, necessariamente, ao primeiro. Do mesmo modo o mandato deve ser cumprido até ao fim, e em caso de substituição o substituído deve perder o mandato.

3- A profissionalização do cargo de Deputado. Jorge Miranda defende-o no pressuposto de que só assim os melhores estariam disponíveis para aceder às funções públicas e de que assim acabariam as zonas cinzentas dos conflitos de interesses. Confesso que esta opção do Professor, só a enquadro perante um regime de redução do número de cargos públicos ao mesmo tempo que as remunerações devem subir substancialmente para poderem atrair os mais competentes. O sistema melhorará? Penso que sim se se recrutarem os melhores que não dependem da política para fazer carreira. Caso contrário, o defeito de origem, a dependência dos cargos e logo da decisão do directório na sua indicação para fins electivos, não é eliminado. O caso açoriano deve implicar esse esforço de redução do número de cargos públicos e dos respectivos cargos de nomeação política e o aumento das respectivas remunerações – os que ficam e os que se disponibilizam terão de ser deste modo os melhores. O factor remuneração é uma realidade incontornável na sociedade moderna, a ser encarado sem tabus. Menos políticos, melhores políticos e mais bem remunerados, é um desafio a cumprir. Menos porque, como somos poucos, o topo da pirâmide não pode ser descompensado. Melhores porque só estes podem trazer mais valias em favor do interesse público. Mais bem remunerados para que os melhores profissionais se disponibilizem a encarar a causa pública com a normalidade e com disponibilidade permanente saindo das suas «varandas de inteligentes» onde a crítica e o diagnóstico apenas serve para cultivar egos.

A juntar a estas ideias, recebidas com seriedade e abertura por parte dos presentes, quero indicar outras:

4- A previsão estatutária da iniciativa legislativa popular, necessidade emergente dos tempos hodiernos que terá a vantagem de trazer para a cena parlamentar a voz, a posição, a intenção directa do cidadão, fazendo-o olhar as instituições como um reflexo da sua vontade e não de membros ou meios só ao alcance de privilegiados.

5- A introdução de obrigação das listas paritárias nas candidaturas – 50% homens 50% mulheres -, o verdadeiro «choque feminino» nas palavras de Miguel Veiga. A política no feminino com novo sentido das coisas, novas vontades, novos corações, menos tecnocracia e mais percepção e identificação das causas societais. O objectivo da identificação e correlação iqualitária de forças na representação da sociedade de onde emana deve passar das intenções.

6- A eliminação de toda e qualquer regalia do ponto de vista das reformas vitalícias e subsídios de integração em cargos políticos. Decorrência natural da profissionalização do cargo.

7- Finalmente, a redução da máquina administrativa, reduzindo os departamentos do Governo Regional, suas dependências, seus fundos e institutos, acabando com as delegações de ilha das secretarias regionais, formando a delegação de ilha do governo regional, encarada como unidade orgânica que gere o todo dos serviços e dos recursos técnicos e humanos, que facilita a mobilidade interdepartamental. Ao mesmo tempo, deve introduzir-se um novo elemento executivo no processo de subsidiariedade e de proximidade da administração com as populações: seja delegando poderes executivos nos conselhos de ilha, seja encontrando nas associações autárquicas os parceiros privilegiados para uma agregação de esforços e técnicos, financeiros e humanos, dinamizando os projectos integrados de desenvolvimento que vão para além da fronteira da freguesia ou da câmara municipal.

Reformar é, pois, mudar, é introduzir novos factores e elementos no conjunto, enquanto o país segue discutindo afincada e pressurosamente a reformas necessárias ao desenvolvimento, nas quais se destacam questões fundamentais e estruturantes como o casamento e adopção por homossexuais, o aborto, a eutanásia e a clonagem, este vosso amigo, na sua infinita ignorância, humildade e constante alienação do colectivo prossegue, então, com as questões menores e marginais. E se continua a haver quem ache que reforma é aquela que receberemos ao fim de 36 anos de trabalho (chamem-lhes tolos…) então tudo o que acabo de descrever é a minha verdadeira Contra-Reforma…

P.S. Da conferência deixo um momento incontornável, a altura em que desafiado, o Professor Jorge Miranda desmontou tecnicamente a tese da simples diminuição de um deputado por ilha (resultante do referendo patrocinado pelo PSD/A sobre a revisão do sistema eleitoral) considerando-a inconstitucional, quanto mais não fosse pelo círculo do Corvo, ao mesmo tempo que não deu cobertura a interpretações de que o círculo regional de compensação da autoria do PS seja inconstitucional face à Lei Constitucional n.º 1/2004.