terça-feira, maio 27, 2008

DE ALGUNS HOMENS SEM QUALIDADES


"Este é o livro das ideias num tempo em que as ideias aparecem ou se querem mortas"

Se vos disser, sem mais, que esta minha época literária começou e encerrou em Março, pensarão ser sinal de ligeireza, indigna deste Suplemento, a menos que fale de Robert Musil “um dos nomes do «quarteto revolucionário» na prosa das primeiras décadas do século XX – Proust, Joyce, Kafka, Musil“, conforme o apresenta a contra-capa d’ O Homem sem qualidades (1). Ainda assim, mesmo não procurando justificação, não haverão melhores palavras do que as inaugurais de João Barrento (tradução, prefácio e notas): “Esta é sem dúvida uma obra singular. E única no panorama da ficção do século XX. Mais do que um romance (…) é o maior projecto romanesco, deliberada e quase necessariamente inconcluso e inconclusivo, da literatura do século passado. Um rio sem limites nem margens, que não desagua em nenhum mar conhecido” (pag. 17, vol I). Esta terá sido a “tarefa criadora mais desmedida da literatura moderna” que pretendeu “pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é”, porque “se existe um sentido de realidade (…) então também tem de haver qualquer coisa a que possamos chamar o sentido da possibilidade” (pag. 41, vol I).
Na sua obra, por morte, inacabada, por conceito, inacabável, Musil, ou Ulrich, o protagonista, com uma atitude de grande cepticismo, mas sem negativismo ou niilismo, crê no sentido da possibilidade das coisas, como um verdadeiro cientista, num ideal de vida (insustentável?) em constante experimentação e permanente construção de hipóteses. O homem que (re)apresenta, é aquele que de si próprio apenas sabe “que todas as qualidades lhe são igualmente próximas e distantes e que todas elas, quer se tenham ou não tornado suas, lhe são indiferentes” (pag. 216, vol I), que pensa “o mundo não apenas como uma sucessão de acontecimentos mas como uma sucessão de acontecimentos na consciência” (2), num “mundo de qualidades sem homem” em que parece que “a experiência de cada um se tornou impossível e o fardo ameno da responsabilidade pessoal se vai dissolver” (pag. 214, vol I).
Um indispensável livro, sem simplismos nem dogmatismos, para viver “a história das ideias, e não a história do mundo” (pag. 484, vol I), do mundo que “não obstante a grande dose de espírito que possui, se encontra também num estado (…) de imbecilidade – é mesmo impossível não dar por isso quando se tenta entender como um todo, e numa perspectiva global, os acontecimentos que nele se desenvolvem” (pag. 422, vol II).
Este é o livro das ideias num tempo em que as ideias aparecem ou se querem mortas, em que os enredos se desenvolvem de forma plástica para que o homem/leitor não tenha de completar um silogismo ou procurar um conceito. Este é o tempo da sobrevalorização do “mostrar” sobre o “pensar” que cria a impaciência generalizada. Este poderia ser um livro fora de época, no tempo do “diz-me o que sentes, não o que pensas”, quando, na verdade, é, de novo, o livro certo para este tempo a preto-e-branco (3), “cujo espírito [cada vez mais] se assemelha ao de uma feira” (pag. 536, vol I).

(1)Volumes I e II, Publicações D. Quixote, 2008.
(2)Caderno Ípsilon, Jornal Público, 18 de Abril 2008
(3)http://www.greatbooksguide.com/Musil.html

Sé, 21 de Maio de 2008
Publicado no Suplemento de Cultura do Açoriano Oriental