domingo, maio 18, 2008

«1968» REVISITADO

“A França aborrece-se", titulava o jornalista Pierre Viansson-Ponté, no Le Monde, em Março de 1968. Dois meses depois foi o que se viu. O Maio de 68 tem sido, sucessivamente, representado como uma conspiração, o ensaio geral da grande revolução, uma crise de crescimento da universidade, um desafio edipiano, uma revolta civilizacional, um conflito de classes. Sob a sua referência reúnem-se repertórios de agitação (manifestações, ocupações de edifícios, marchas, sequestros, afrontamentos com as forças da ordem), heterogéneos, que a contracultura, retrospectivamente, serviu para catalogar.
Mas, segundo cada caso a agitação foi ou não duradoura, teve clarões, decaiu pela sua própria dinâmica, ou ampliou-se, chegando a por em causa governos. Na sua configuração social as contestações também se diferenciaram, mobilizando segundo os lugares e momentos, operários, estudantes, camponeses e artistas.
Contudo, nenhuma abordagem elementar ao fenómeno pode esconder a oposição que o atravessou: entre os que nada tinham contra o mundo tal como ele era (quer a ele se submetessem ou dele tirassem partido) e todos os que esperavam que ele viesse a ser outro tal como o concebiam. Se nem todos os protagonistas viram as suas esperanças realizadas, quase nenhum deixou de ficar marcado pelas circunstâncias (1).
Maio de 68 também foi sintoma de um novo espírito libertário e anti-autoritário que se exprimia filosoficamente em Sartre decifrando a existência como um constante exercício da escolha livre do indivíduo, único responsável de si mesmo. Este foi o «background» ideológico para o assalto de uma geração às autoridades e aos dispositivos de obediência. A prevalência da atitude crítica não se ficou no campo político: «É proibido proibir» ou «Sejam realistas, peçam o impossível», reflectiam um estado de espírito que abarcava domínios do quotidiano como a «revolução sexual», potenciada pela generalização dos meios de contracepção e dos feminismos americanos e europeus. Ao lado da revolução erótica houve a revolução da sensibilidade e a descoberta de que era possível viver de outra maneira.
Acontece que, após 40 anos, os acontecimentos de Paris mostram uma juventude zangada com os pais, o país ou o mundo, tão diferente da de hoje, em que os jovens vivem um dia-a-dia desinformado, timorato e condicionado no futuro. Claro que cada geração só pode recordar e integrar o que constitui a sua experiência vivida, na verdade, o que para uns foi existencial para outros é apenas História e as duas não são o mesmo. Ou seja, para os jovens de hoje a liberdade será de tal modo adquirida que nenhuma resistência se lhe opõe. Contudo, o problema deixou de ser esse em qualquer das formulações de 68 (política, artística, sexual ou outra). O problema actual, são os horizontes fechados. A liberdade sem perspectivas, condenada à precariedade, ao provisório, à instabilidade em contraste com os seus progenitores que, porventura sem liberdade, tinham como horizonte a perspectiva de um destino que eles próprios poderiam construir. Por isso, o afastamento da juventude relativamente a um empenho social e político não pode ser motivo de espanto. Há ansiedade, não pela falta de liberdade, mas pela falta de futuro, que era o que nos anos 60 abundava, o que terá consequências gravosas em termos políticos a curto/médio prazo e civilizacionais a longo prazo (2).
Edgar Morin fala-nos dos perigos que espreitam a sociedade actual concluindo que «nada é irreversível e as condições democráticas humanistas devem sempre regenerar-se, sob pena de degenerarem. A democracia tem necessidade de se recriar em permanência. Daí que contribuir para regenerar o humanismo obrigue a pensar a barbárie. E por isso resistir-lhe.» Resistir à barbárie obriga a estarmos de sobreaviso, sem cair na tentação de considerar que a liberdade e a democracia, a paz e a felicidade são realidade definitivamente adquiridas. Não são. A indiferença cívica, o egoísmo, o comodismo, o conformismo e o imediatismo criam condições para a decadência. Resta saber se já estamos perante graves sintomas que suscitam mudanças profundas (3). Se foram os «soixante-huitards» os autores do mundo de hoje, foram eles, também, quem nos legou a solução. É o inconformismo que deve prevalecer. Um inconformismo capaz de valorizar a liberdade e a responsabilidade, a autonomia e a coesão social. Também nos Açores devemos perceber que é sempre possível pior.

(1) A reviravolta de Maio de 68, de Bernard Lacroix, na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, Maio 2008
(2) Um novo espírito libertário, de Tito Cardoso e Cunha, no Jornal de Letras, 7 de Maio 2008
(3) Morin pensa Maio, de Guilherme d’Oliveira Martins, no Jornal de Letras, 7 de Maio 2008

Sé, 14 de Maio de 2008